segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O prazer da responsabilidade de cuidar

As palavras "prazer" e "responsabilidade", quando lidas em conjunto, podem sempre provocar estranheza. Associar uma a outra não parece ser uma missão pacífica, fácil, imediata.
Não raro, tendemos a dissociar uma de outra, sentindo que as nossas responsabilidades mais se aproximam dos nossos deveres, das obrigações e que os prazeres se relacionam com sensações de libertação, e de egoísmo sem culpa.
É talvez verdade que assim seja.
A emoção "prazer" é consensualmente definida e entendida como a sensação derivada do bem-estar, que não parece compatibilizar-se com o sentimento de "obrigatoriedade" e "imposição". Mesmo quando "obrigatoriedade" e "imposição" são um prazer, são-no porque o sujeito decide ou experimenta, por si, que o sejam e não porque se lhe incutem. Neste caso, seria uma obrigação e um desprazer obrigá-lo a ser livre e a criar as suas próprias decisões.
De todo o modo, é importante ter em conta que os seres humanos experimentam bem-estar de forma diversa entre si, logo sentindo prazer de maneiras muito diferentes, advindo de vivências e acções muito variadas.
Os indivíduos não sofrem todos com as mesmas coisas e não sentem todos alegria nas mesmas situações.
Em bom entendimento, parece importante nunca afastar de qualquer análise, ensaio, estudo sobre o comportamento humano o elemento "diversidade". "Nem sempre nem nunca" parece ser uma expressão popular muito apropriada para aplicarmos a quaisquer considerações sobre a condição humana.
O Amor surge como um plano das nossas emoções onde o âmbito do "prazer" se amplia de tal forma que, ao pensá-lo, ficamos com a convicção de que a palavra parece não chegar para o seu total significado.
Alterações de sentimento ao longo da vida à parte, com perda ou diminuição do Amor e da Paixão, parece porém, ser comum a todo o indivíduo enamorado a necessidade de cuidar do seu parceiro.
Na verdade, se a Paixão ainda estiver associada ao chamado vulgarmente "Amor" (o tal sentimento mais brando, feito de ternura e compreensão e que aqui entendemos apenas como parte do Amor pleno, usando o adjectivo "pleno" por mera necessidade social de nos fazermos entender na nossa concepção), se essa associação de sentimentos estiver presente, falamos ainda duma necessidade de que o parceiro queira que sejamos nós, em particular, a cuidar dele. Portanto, não só da necessidade de cuidar, como da necessidade de ser desejado nesse acto de cuidar.
E é aqui que parece que tudo se baralha. Ou se elucida: o prazer parece derivar do egoísmo, no sentido em que é provocado por alguma situação que nos transmite pessoalmente bem-estar, sem limitações que poluiríam essa sensação.
E aqui, ser-nos confiada a responsabilidade de cuidar do outro surge, surpreendentemente, como fonte de prazer e satisfação pessoal. Em bom rigor, cuidar do outro quando estamos apaixonados nada tem de "nobre" ou altruista. Como se demonstra, a necessidade de nos tornarmos importantes e até mesmo indispensáveis ao parceiro deriva dos sentimentos próprios dos apaixonados, da compulsão pela conquista do outro e da urgência em tornarmo-nos imprescindíveis ao objecto de desejo.
Isso parece justificar que as pessoas apaixonadas sintam muitas vezes desconforto quando se apercebem que o objecto da sua paixão experimenta prazer em situações onde os parceiros não estão, ou se sinta bem quando outras pessoas, (mesmo que sejam amigos ou família) cuidem também de si.
A paixão parece não compreender nem aceitar que o objecto da sua paixão viva sem si, experimente prazer sem si, uma vez que para os apaixonados, a primordial fonte de prazer é o parceiro e não se contenta sem reciprocidade.
Diferente parece ser em casos em que a Paixão desaparece ou não existe, mantendo-se o outro sentimento que, muitos que os separam, chamam de Amor.
Se olharmos em nosso redor, deparamos com muitos casais, em que um cuida do outro apenas pelo prazer de cuidar e não pela necessidade de ser reconhecido enquanto elemento essencial à criação de bem-estar na outra pessoa.
Já nos casos em que não há paixão, o parceiro parece lidar muito melhor com a introdução ou permanência de outras fontes de cuidado ao parceiro, como amigos, família e experiências a só.
Para isso acontecer, parece indispensável que a paixão não seja "metida ao barulho" uma vez que nela dificilmente caberão sentimentos altruístas e desinteressados.
Parece-nos possível, porém, que alguém que sinta o Amor pleno, o tal sentimento preenchido com paixão e outro sentimento mais plácido e enternecido, sinta prazer tanto no simples cuidado do parceiro como em sentir-se indispensável ao parceiro nos cuidados que lhe dedica.
No final, tudo dependerá, também e inevitavelmente, da resposta e reciprocidade que o objecto amado der no seio da relação.
Parece-nos, todavia, preocupante, do ponto de vista da saúde emocional do ser humano, que a necessidade de cuidar de alguém que não cuida nem quer cuidar de nós resulte, ainda assim, numa experimentação de prazer para o indivíduo. Temos a opinião que nenhuma relação de amor a dois, entendida aqui como ligação recíproca numa conexão de indivíduos, é desejável que um elemento se especialize em dar e o outro se especialize em receber. Mas também aqui, cabe dizer que é o próprio casal que decide qual a sua dinâmica, mantendo ou não práticas saudáveis nesse relacionamento. Em bom rigor, a baliza do "saudável" define-se pela felicidade dos indivíduos. Se ambos estão felizes, provavelmente a relação, mesmo que não assente na reciprocidade de trocas e afectos e enquanto nenhum dos elementos se ressentir com isso, será "saudável". A questão é que parece que raramente um casal permanece muito tempo feliz com uma dinâmica unilateral. Mais cedo ou mais tarde, a experiência parece apontar para um estado de falência do parceiro que "dá".
Nesses casos, parece-nos decorrer, logicamente, do que fica dito que, provavelmente, não haverá nem paixão por um lado, nem tudo o resto, por outro, para retribuir à pessoa que parece amar ou viver a sua paixão sozinha.
O sentimento de Amor, mesmo que pensemos no amor familiar ou na simples amizade, sempre implicará um prazer em e uma necessidade de cuidar do outro.
O Amor é um sentimento tão forte e tão próprio, ao ponto de ser talvez a nossa única emoção capaz de tornar a responsabilidade um prazer que não nos faremos rogados em buscar. Seja ele Amor por alguém, por uma causa ou por uma profissão.
Se não se retira prazer do cuidado do outro, e já nem falamos do prazer que se retira em nos sentirmos indispensáveis ao bem-estar do parceiro (e de preferência em quase total exclusividade), dado que isso já associámos ao egoísmo do sentimento de Paixão, resulta evidentente que não poderemos dar como verdadeiro que nós, não sentindo nenhum impulso de cuidado para com o outro, ou não nos sentindo responsáveis por ele, nos encontremos enamorados.
A necessidade de nutrir e cuidar aquilo que nos é caro e as pessoas que nos são importantes não surge passível de ser excluído do Amor.
Se a necessidade de corresponder à pessoa objecto do nosso desejo, de lhe bastar, de cuidar e de nos tornarmos indispensáveis à sua felicidade tiver morrido, certamente que teremos também o óbito da Paixão.
Quando o nosso prazer começa a ser buscado fora do Amor, em experiências que se tornam mais ricas sem a presença do parceiro e recomeçamos a sentir maior bem-estar na ausência do outro, o esquecemos, o remetemos para um segundo plano, perdemos a urgência em chegar-lhe, ou sentimos o peso da responsabilidade de cuidar ou se, quando o fazemos, já não retiramos nenhum prazer, teremos um fiel indicador de que o Amor, certamente, terá terminado. Poderá, contudo, sobreviver uma grande amizade, sentimento compatível com um certo desprendimento, com um abertura a outras pessoas e experiências e onde a necessidade do outro não é permanentemente sentida.
Mas mais uma vez reitera-se a ideia: Casamento e Amor não são uma e a mesma coisa. Um pode existir sem o outro, tudo dependendo do que se acorda no seio da relação e do que cada pessoa espera e tolera num relacionamento. O contrário também é certo, também poderá haver Amor sem casamento ou compromisso. Até porque o Amor não é escriturável.

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