quarta-feira, 5 de novembro de 2008

1+1 ou 2?


Não resulta líquido se uma relação amorosa é uma mera expressão matemática onde se visualiza a nítida separação dos numerais ou se, por outro lado, é antes a soma final, a fusão de duas parcelas numa única realidade.
Expressões como “caras-metades”, “almas gémeas”, ou “somos um só” parecem apontar para uma interpretação integrativa dos indivíduos na relação: o sujeito singular deixa de ser visto como ser unívoco, passando a fazer parte de uma nova entidade, aqui identificada como “casal”.
De outra perspectiva, mais moderna e mais commumente defendida pelos “ólogos” do nosso tempo, podemos ver uma relação amorosa como uma partilha de espaços individuais, partilha essa que nunca compromete a esfera pessoal de cada indivíduo e nunca a ela se sobrepõe.
Assim, a vontade e a liberdade de cada um são entendidas como supremas face a um eventual espaço comum, criado por ambos os indivíduos que compõem o casal.
Existe ainda uma terceira forma de abarcar a questão. Assim, numa relação podem coexistir três espaços distintos: o do indivíduo 1, o do indivíduo 2 e um terceiro que é o espaço comum a ambos e que é resultado da dinâmica relacional entre ambos.
Na verdade, pode argumentar-se que, bastando a vontade de um, a relação amorosa pode terminar a qualquer tempo e que, por isso, a vontade do indivíduo sempre será privilegiada face à esfera do casal.
Porém, isso parece ser tão verdade como o facto de serem precisas as vontades dos dois elementos conjugadas para que a relação se concretize e perpetue no tempo. Parece claro que, nesta perspectiva, uma relação sempre dependerá da vontade centrípeta dos intervenientes, vontade essa que será fundida numa nova esfera comum a ambos os sujeitos.
Da observação que se faz da sociedade, o argumento da primazia da individualidade sobre a relação parece surgir em momentos de ruptura ou colisão de interesses (entre os interesses individuais e os da própria relação). Sendo certo que cada vez mais esses choques ocorrem, certo será também que mais se bradará pelo reconhecimento da vontade e liberdade singulares nas relações afectivas.
Na verdade, cada vez mais as relações são vistas como um meio para atingir um fim: a realização e bem-estar individuais. A relação, por si só, deixa de ser encarada como uma entidade com necessidades e dinâmicas próprias, onde as vontades e liberdades se transformam num modelo novo, adaptando-se a uma terceira realidade com um espírito próprio de práticas, vivências e sentimentos homogéneos.
Mas se pensarmos bem, todas estas teorias, visões sobre o tema estarão correctas.
Primeiro, porque nenhuma relação se inicia sem que as vontades individuais se conjuguem e encontrem num mesmo propósito, numa mesma vontade: a de gerar uma esfera emocional comum a ambos os elementos que irão constituir um novo casal.
Segundo, porque nenhuma relação tem continuidade se ambos os indivíduos não tiverem essa mesma vontade.
Terceiro, porque, mesmo admitindo a existência de uma nova e esfera emocional, que anula ou, no mínimo, se sobrepõe à vontade individual de cada um, essa cedência só ocorre porque, no uso da sua liberdade, ambos os indivíduos se sentiram compelidos, pela sua própria vontade e sentimento, a agir em conformidade com esse desiderato.
Olhando em redor, não parece difícil que isto ocorra numa fase inicial de um envolvimento amoroso. Aliás, parece que a maioria das relações amorosas que assentam a sua base na partilha do amor pleno iniciam assim o seu percurso.
A grande questão será sempre a da continuidade desse sentimento que moveu os sujeitos a despojarem-se de si próprios, ou pelo menos a pensarem que o fizeram.
E esta é a grande questão: será que alguém abdica realmente de si próprio numa relação feliz? Não será mesmo a sua vontade egoísta, a sua procura pela realização individual que o impelirá a dedicar-se totalmente a um projecto a dois?
Muitas vezes a bioquímica parece trair-nos: se é ela a principal responsável pelo surgimento de novos e profundos sentimentos, também é ela que praticamente determina o seu fim.
A própria interacção entre os sujeitos da relação pode alterar a bioquímica individual de cada um, aumentando ou diminuindo a libido, a saudade, a vontade, a projecção onírica e fantasiosa de uma relação.
Mas, em última análise, só se poderá conceber a criação de uma dita "terceira entidade" na relação, relembrando aqui as teorias dos holísticos (o resultado final é mais do que a soma das partes) se pensarmos que ela foi fruto de duas vontades egoístas que se encontraram num mesmo propósito.
Essas vontades são condicionadas grandemente pela bioquímica, como se explicou, e são mantidas, aumentadas ou diminuídas durante a interacção no seio do casal.
O final de uma relação explica-se pela dinâmica do casal, que deixa de ser feita em harmonia e com prazer e também pela alteração bioquímica que sempre ocorrerá em cada ser humano com a passagem do tempo pela relação.
Mas a continuidade dessa mesma relação é talhada pelos mesmos factores que, nesta hipótese, operarão de forma positiva e conciliadora entre os dois indivíduos.
Pessoas acometidas pelo amor pleno experimentarão a necessidade de despojamento de si mesmo e o caminho na relação será o de reconhecer o bem estar emocional do casal, e a provocação de prazer no outro como metas primordiais de vida, fazendo parecer que a esfera individual se anulará em prol destes propósitos.
Na verdade, esta aparente altruísta vontade resulta, claramente, de uma vontade pessoal, de uma condição bio-afectiva do ser humano que o impele a sentir bem-estar e realização emocional na dedicação de si próprio ao outro e à manutenção do seu relacionamento afectivo.
Como dissemos, a tendência é para que essa pulsão seja mais premente no início de um relacionamento e tenda a acalmar com os efeitos do decurso do tempo.
Com efeito, assiste-se a uma tendência de "retorno a si próprio" à medida que a relação avança e amadurece, tornando possível o reaparecimento das necessidades individuais, contrárias ou neutras face à construção e investimento no contexto amoroso com o outro.
Muitas vezes, esse "reacordar" da esfera pessoal, secundarizando o outro e a relação em privilégio do "self", leva à consciência do fracasso sentimental, do fim do amor. E aqui pode acontecer uma de três coisas: conviver pacificamente com uma relação em que um ou ambos sentem apenas uma terna amizade, conviver de forma acomodada com um relacionamento onde os conflitos de interesses individuais é constante, na emergência da morte dos interesses comuns, ou manter uma vida dupla, conseguindo não terminar formalmente a união do casal, mas compensando as vontades individuais a nível sexual e afectivo fora do formalismo da ligação que já não é amorosa.
Vale isto tudo por dizer que é possível ter-se vários modelos matemáticos de relação: modelo 1+1, sem concretizar uma "soma", modelo esse mais frequente nos estágios mais avançados ou terminais de um envolvimento amoroso, onde a partilha e prazer em dar de si ao outro e em estar com o outro terminaram; modelo 2, também este modelo frequente em fases avançadas de relacionamentos e onde ambos se mantêm consentaneamente juntos, felizes na decisão de permanecer num projecto cujos sentimentos se alteraram e já não podem ser qualificados de amor pleno, sendo substituídos por ternura, amizade, companheirismo, fraternidade mas onde a paixão se erradicou ou, a contrario, numa fase inicial onde imperam os sentimentos sexuais, apaixonados mas onde o sentimento sólido de amizade desinteressada ainda não foi construído e onde não podemos sentir outras esfera que não a das vontades egoístas de cada um e; o modelo 1+1=2+x, ou modelo holístico, que encontraremos maioritariamente nas fases iniciais do relacionamento amoroso, mas onde já existe cumplicidade e onde já se reconhecem vontades extra-individuais entre o casal.
É aqui que se acrescenta algo de "maior" à mera união afectiva, sexual e económica de dois seres humanos e onde podemos defender que se crioa uma nova entidade, uma esfera comum aos dois indivíduos que compõem o casal e que é mais do que a simples soma das partes, a mera colagem de ambos. Cria-se uma nova realidade, uma nova célula emocional que é reconhecida pelos outros indivíduos e respeitada como um projecto, como uma união que acaba, consciente ou inconscientemente, por se sobrepor à individualidade de cada membro do casal. Socialmente, este fenómeno é muito visível, dado que as pessoas externas a essa esfera a reconhecem e já não dissociam cada um dos elementos um do outro nem da própria esfera relacional que os une.
Isto só é possível porque o casal exterioriza o amor pleno como que uma aura natural de protecção a agressões externas a essa relação, dando a sensação de imunidade a qualquer factor externo de potencial separação. Cria-se, assim, um ambiente "opaco" onde se torna ténue a divisão entre um e o outro, pois a esfera do envolvimento criado no seio do relacionamento passa a ser mais visível do que os próprios indivíduos, tanto no interior da relação como no exterior.
Os outros modelos relacionais, não assentes no amor pleno têm sido cada vez mais frequentes, dado que temos vindo a assistir a uma adaptação do conceito de "Amor" de acordo com os preconceitos sociais de cada tempo. Talvez o mundo ainda não esteja preparado para banalizar as separações, os divórcios e remeter para o baú as histórias de princípes e princesas que fazem parte do imaginário da infância de todos nós. Talvez tente acreditar que o "Amor" é aquela coisa meio sem graça que tudo aceita e tudo permite e que é compatível com a supremacia das esferas e vontades individuais de cada um, mesmo quando delas não faz parte.
Temo que a desconstrução do "Amor" e a excessiva conceptualização do mesmo tenham dele extraído a magia que lhe é natural. A magia do plano erótico, da paixão sexual, da pulsão animal. Hoje, sempre se tenta fazer parecer que um casamento não tem que assentar num sentimento tão erotizado, que o Amor não se confunde com Sexo, que o Desejo pode ocorrer fora do relacionamento amoroso, que tudo é permitido em nome da perpetuação do formalismo da relação.
Mas o Amor é o Amor. É aquilo que sentimos como resultado da soma de dois indivíduos e que não tem que ser explicado, esticado no tempo, adulterado, desculpado. O Amor carnal, pleno, é, e sempre deverá ser, erótico, mágico, inexplicavelmente exclusivista e leal.
Não casamos com os nossos irmãos, pais ou mães. Essa é outra realidade.
O Amor carnal, pleno, deve ser vivido e não explicado. Mas pode e deve voltar a pensar-se nele. Para que nunca seja esquecido.