quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Uma liberdade mitigada

A liberdade é uma condição indissociável da natureza humana. Liberdade em várias vertentes, a liberdade física (liberdade de movimentos), a liberdade de pensamento, a liberdade de opinião, a liberdade, a liberdade, a liberdade.
O ser humano nasceu condenado à liberdade, à agonia de passar o percurso inteiro da sua vida a fazer escolhas e a formar opiniões.
A sua liberdade é coartada pela apenas pela autoridade e quando ofende a liberdade dos outros, quando colide com o campo de liberdade de outra pessoa, ou quando ofende o bem-estar social, onde a censura pode não ser policial ou autoritária, mas pode levar a outras formas de ostracismo, como a exclusão social ou solidão.
Porém, homens e mulheres nasceram reféns da sua própria condição biológica, genética, fisiológica. Não podemos abandonar o próprio corpo, não podemos ignorar os seus sinais: a dor, o sono, a fome, o cansaço. Podemos optar por suportar a dor, resistir ao sono, tomando um café, enganar o estômago, enchendo-o de água ou tomar vitaminas para melhorar a vitalidade e sentirmos maior grau de energia, mas não podemos escolher não os sentir.
E o amor? Podemos não sentir os sinais do amor? Podemos senti-los e ignorá-los?
O amor é também ele, e perdoem-me os idealistas romantizados, um fenómeno bioquímico. Com efeito, a paixão surge quando nos deparamos com alguém por quem nutrimos um sentimento tão forte que o nosso equilíbrio bioquímico é alterado, tornando a nossa vida focada no outro, de forma quase cega ou obsessiva.
Aliás, muitos cientistas descrevem a paixão como um estado patológico e meramente inicial do amor. É tudo culpa de estimulantes naturais como a dopamina e a noradrenalina, produzidas em quantidades maiores que o usual quando se está apaixonado.
A grande questão, que não podemos descurar, é que estas alterações bioquímicas existem sempre e só se houver uma predisposição ou uma abertura para as sentir. Traumas, defesas, medos, um amor ou mera paixão já existentes podem, de facto, impedir que o nosso corpo reaja ao exterior por forma a sentir desejo ou paixão por outra pessoa.
Resta então saber se é uma opção nossa, tomada na nossa liberdade, (estarmos abertos ao amor), ou se não decidimos isso por nós, se é a nossa vivência que condiciona a nossa própria liberdade.
Parece possível admitir que pode dar-se o caso de quereremos ser livres para amar e algo nos aprisiona. É isso também, em última análise, uma opção, ("O meu organismo pode amar, mas opto por não o fazer pois não posso ou tenho medo"), ou um condicionalismo que nos ultrapassa ("Não sei porque não consigo sentir amor e esforço-me para o sentir").
A resposta correcta é que "depende".
É certo que muitas vezes optamos por um caminho, conscientes de que poderíamos seguir pelo outro. Também é certo que muitas vezes não conseguimos simplesmente desviar-nos do caminho que já não queremos convictamente prosseguir. Os fenómenos do inconsciente são os mais difíceis de compreender e domar, mas acompanham-nos diariamente, a cada instante. Dependendo do que temos guardado dentro de nós, e de quão bem guardado isso esteja, mais simples ou complexo será "sermos livres", de nós próprios e para nós próprios.
Dificuldades à parte, apaixonamo-nos, por opção, por estarmos abertos, por querermos. Dificuldades de lado, deixamos que a interacção entre a nossa mente e corpo e a outra pessoa, ou a projecção que fazemos dela, altere o nosso modo de funcionamento físico habitual.
Contudo, é outra hormona, a oxitocina a causa para a existência da satisfação sexual com uma só pessoa. A capacidade de prolongar as relações amorosas dependente dessa hormona. Ela permite modificar milhões de circuitos no cérebro e, assim, influenciar a percepção de cada indivíduo face ao real. Pessoas que produzem menor quantidade de oxitocina têm maior dificuldade em permanecer muito tempo apaixonadas. Liderada por essas moléculas, a química sexual dura em média dois anos. Esse é o tempo que os entendidos atribuem à paixão. O amor surge então quando a oxitocina substitui as neutrofinas. Nessa altura, o desejo intenso, típico de um apaixonado dá lugar a uma forma mais enternecida de amar. Mas, os psicólogos também afirmam que a bioquímica não faz tudo sozinha. Manter a relação depende também da razão, compreensão, habilidade e até do contexto histórico. Estas advertências foram feitas também relativamente a um estudo feito muito recentemente sobre a sexualidade masculina, levado a cabo na Suécia. Parece que a existência do alelo 334 nos seres humanos de sexo masculino, especialmente se possuem uma ou duas cópias desta variação especifica no gene, têm o dobro das hipóteses de experimentar problemas com relações monogâmicas e em manter-se interessados numa só parceira. Estudos anteriores feito com mulheres gémeas também revelaram que nas mulheres podem ser mais ou menos infiéis de acordo com a sua genética, embora nada se relacione com o alelo 334, que não é aplicável ao sexo feminino.
Posto isto, algumas reflexões se impõem: somos realmente livres para amar? amamos desprendidos de todas as "prisões" educacionais, culturais, sociais, familiares que consciente ou inconscientemente nos acorrentam? Optamos por amar ou não amar uma pessoa, ou o próprio curso da nossa vida, das nossas experiências leva-nos a procurar alguém ou a afastar alguém do nosso caminho, sendo que o resultado, se a nossa vida tivesse sido outra, seria diferente? Somos condicionados pelo nosso corpo, pela sua bioquímica, ou activos condicionantes deles?
Parece-me inevitável concluir que a nossa liberdade nestas matérias é meramente conceptual. A liberdade é uma responsabilidade quase incomportável e acarreta a aceitação das consequências das nossas escolhas, escolhas essas que fazemos, porque somos livres. Ninguém vive isolado das suas sombras, das suas memórias, dos seus medos e experiências. Todas as condicionantes das nossas escolhas, são as nossas prisões.
Numa relação, casamento ou outro tipo de ligação, também lidamos quotidianamente com o peso da liberdade.
O ideal seria escolhermos livremente casar. Mas será que o fazemos? Muitas pessoas, especialmente mulheres, casaram e casam como motivo aceitável para as suas famílias originárias permitirem emocionalmente que saiam de casa, muitos casais unem-se porque mantiveram relações sexuais donde resultou uma gravidez, muitos homens casam para terem sexo regular e estável nas suas vidas e, muitas vezes, por gratidão.
Tudo bem: é certo que será sempre uma opção "não casar". Mas será que controlamos tanto assim as nossas prisões? Para se decidir em liberdade, é preciso que essa decisão esteja isenta de pressões ou constrangimentos de qualquer tipo. Esse elemento integra o conceito comum de liberdade.
Se formos minuciosos no pensamento, somos forçados a perceber que a nossa liberdade não acaba apenas onde começa a do outro, acaba antes disso, onde as nossas prisões e barreiras começarem.
Manter-se num casamento atravessa o mesmo rio de dificuldades. O Amor pode acabar, A paixão inicial pode terminar sem que reste nada mais, ao invés de se transmutar e durar uma vida inteira e ainda assim a pessoa pode decidir manter-se casada.
Mais uma vez verificamos que o casamento pouco tem a ver com o Amor. Até porque sabemos que há muitos casamentos , sólidos, onde as pessoas já se apaixonaram, pensaram, fantasiaram, amaram outras pessoas sem que, contudo, tivessem escolhido "abandonar o barco".
E muitas dessas ocorrências contaram, quando existe uma relação de confiança com o parceiro, com a concordância e compreensão amiga deste. É o casal que decide, de acordo com as suas sombras pessoais, vivências e desejos, quais a prisões que prevalecem e determinam as suas escolhas. A confiança entre os parceiros, terá sido, porém respeitada.
Muitas pessoas viveram essas ocorrências em segredo, sem as manifestar no casamento. Talvez por não se sentirem realmente livres para as terem vivido, talvez porque o medo de que as suas opções tenham afectado a liberdade do outro a ponto de o magoar e desrespeitar levassem à perda duma relação que lhees trazem alguma tranquilidade, como que se de um fio de prumo se tratasse e equilibrasse toda uma vida. Aí poderemos dizer que houve uma verdadeira infidelidade, pois quebrou-se o laço de confiança e verdade em que deve assentar o casamento.
Há aqueles que defendem que são livres de pensar, de desejar outras pessoas, de fantasiar, flirtar, seduzir, embora não se sintam livres para concretizar fisicamente nenhum desses sentimentos. São livres e donos do seu pensamento, ainda que tenham optado por não viverem de forma independente, em prol duma vida a dois, duma vida onde, supostamente, se vive em total comunhão, entrega e cumplicidade.
Há aqueles que defendem que são até livres de concretizar fisicamente os sentimentos que entretanto surgiram orientados para fora da esfera do casal, não sentindo porém que tenham a liberdade de abandonar o lar, que consideram verdadeira "traição".
E num segundo momento de reflexão perguntamos: E esses sentimentos, são realmente vividos de forma pacífica e alegre, livre, afastada de todas as prisões, idealizações que sempre fazemos do amor e do casamento? Haverá ou não lugar a uma culpabilização interna, ainda que exteriormente aparentemos uma fria convicção de que a nossa posição é, toda ela, correcta?
"Estou casado, mas não estou morto." Sei que terei desse lado muitos ecos desta resposta.
Mas reparemos: será que numa relação a dois, é aceitável e "normal" que a pessoa se sinta morta, e precise de estímulos sexuais, amorosos, externos para se sentir viva, feliz, divertida e motivada? O facto de a pessoa sentir que o casamento é um limite à sua liberdade, (seja ela liberdade de pensamento ou de acção), não tentará disfarçar apenas o sentimento de que, ela sim, já não sente que permanece por "livre" vontade no seu casamento, agarrada que está às suas prisões? Ou é um estado transitório até obter a coragem para, livremente, ir embora?
A exclusividade sexual, que pode ir do campo meramente fantasista até ao campo carnal conretizado, deve também ela, ser vivida e oferecida em plena liberdade, livre de obrigações que não as da nossa própria vontade e desejo sexual.
A exclusividade sexual, embora estranhamente sempre discriminada e desacreditada, é também uma opção razoável, real, possível e compatível com a condição humana. É um sentimento, para o qual estaremos abertos, livres, ou não, de acordo com aquilo que a nossa vivência e as nossas prisões nos ditarem. É, também ela, uma vontade.
Para os que ripostam dizendo que o homem, é antes de tudo, um animal, também ripostaremos, que ele é, depois de tudo, razão, cultura e educação. Além disso, há inúmeros exemplos de monogamia na natureza, a começar por certas espécies de ratos e a acabar nos elefantes.
O ser humano não vive apenas de reflexos condicionados e instintos básicos. E mesmo que assim fosse, na diversidade que é o ser humano, um dos seus instintos poderá ser o da monogamia.
É deveras importante não remeter o plano racional e emocional do homem para o fim da história. Toda a nossa sociedade existe, construída e alicerçada naquilo que nos diferencia dos outros animais: a capacidade de escolher, optar, de dizer e sentir que não ou que sim.
Ela (a exclusividade sexual) pode ser vivida dentro duma relação, de forma física e concretizada, ou apenas a nível mental, fora de uma relação, a sós, fazendo do objecto de desejo, o único que estimula e acende a libido.
Na verdade, é apenas um reverso da mesma moeda que tem, do outro lado, a abertura sexual a vários parceiros e que merece a mesma credibilidade e atenção quando pensamos e falamos de Amor.
Atenção: não há nenhuma obrigatoriedade em deixarmos de estar apaixonados ao fim de 2 anos. Por favor, não nos sintamos culpados porque o nosso sentimento é intenso e cego ao fim de 10 anos de comunhão com o mesmo parceiro! Não entendemos que haja sequer algum transtorno psiquiátrico em torno disso. É uma orientação de vida, uma obediência a um sentimento forte que não desaparece (e isto pode efectivamente acontecer, não vamos dizer nem sempre nem nunca), uma simples convicção.
Isto é tão passível de acontecer como acontecer o inverso.
Obviamente esta forma de sentir chocará com o indivíduo que funcionar de forma diferente, especialmente se partilharem a vida um com o outro.
Mas mais uma vez, aí é altura de sermos livres, de decidir de acordo com as nossas motivações e preferências pessoais.
Podemos ficar, podemos ir embora.
Se estivermos predispostos a isso, podemos ficar e até tentar mudar (e eventualmente sermos bem sucedidos). Ou podemos simplesmente preferir recomeçar de novo.
A nossa liberdade é aquilo que nós conseguirmos deixar que ela seja, a nossa vida o reflexo resultante das nossas próprias permissões.
E da nossa coragem.

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